sexta-feira, 21 de março de 2014

Morte, uma emancipação de Deus


“É melhor ir a uma casa onde há luto do que a uma casa em festa, pois a morte é o destino de todos; os vivos devem levar isso a sério!”
Eclesiastes 7:2 (NVI)

Ah! Dona Morte! De tempos em tempos temos nossos relances sutis, e destes inálogos (neologismo para um diálogo interno em mim mesmo) vamos aprendendo sobre a intervenção de Deus nos soberbos planos humanos. Já faz algum tempo que não dialogamos (referência aos artigos “em diálogos com a morte” e “palavras antes do adeus” – escritos pelo mesmo autor), nem por isto não deixamos de nos encontra por ai em várias ocasiões fúnebres. Momentos estes que se misturaram com silêncios, choros e desesperança – coisas de gente humana que ainda não aprendeu sobre a brevidade da existência. Momentos estes que comprovaram nossas vulnerabilidades – coisas de gente humana que ainda não aprendeu a “largar” os remos da nau chamada vida. Momentos estes que emudecem nossas teologias – coisas de gente que ainda não aprendeu que nem tudo precisa ser explicado, apenas vivido. Nestes momentos fico a tentar te entender, tentando perscrutar suas reais intenções e (des)serviços.

Há alguns dias, especificamente no dia 13 de Março de 2014, você (morte) se encontrou com um bom velhinho (não o mitológico natalino avermelhado), e deste soluço assombroso nos deixou a velar o Floripes Soares Maia – Pr. Maia – ou como chamávamos, sr. Frederiksen, por causa das semelhanças com o velhinho na animação “Up! Altas Aventuras” produzido pelos Estúdios Pixar em 2009. Pouco antes, especificamente no dia 31 de Janeiro de 2014, você (morte) já tinha deixado seu rastro quando se encontrou com o Clói Marques Pereira – Pr. Clói – um simples pastor que sem estapafúrdicos espetáculos disseminou missões pelo cerrado goianiense. Dois homens que Deus resolveu emancipar para Si – o termo emancipação tem sua origem etimológica no latim mancipium que significa “aquele que toma em suas mãos”. Aqui, percebi que você (morte) agiu como uma resgatadora, conduzindo para junto do Criador os Seus amigos preciosos. E, então, por mais que possa talvez soar entranho, parece que Deus usou a você (morte) para quitar a saudade que nEle havia – obviamente que Deus é um ser completo e suficiente em Si mesmo, mas acredito ser oportuno valer-se de uma leitura antropopática, ou seja, atribuir sentimentos humanos a Deus.

Pr. Maia – deixa saudades imensas em minha vida pastoril, marcas que levarei até o dia de meu encontro com a morte, pois dentre tantas lembranças fica duas latentes. Primeiro, por ter sido meu professor no Seminário Betel Brasileiro (2000-2003), oficio que o fez com profunda dedicação, esmero e comprometimento. E, segundo, o fato de ele ter sido quem apresentou, voluntariamente, disposição e disponibilidade para organizar a minha sabatina/ordenação pastoral, que aconteceu no dia 29 de Setembro de 2007. Um “velhinho” que com trejeitos Batista enraizado no seu caráter ousou romper as barreiras denominacionais e escolheu expandir o Reino. Situação que na época fora de grande estranheza por conta do seu estilo sistemático e conservador. Surgia a então novel igreja denominada “Comunidade da Fé – Igreja Cristã”. Ele fez algo que nunca me esquecerei, ao invés de convidar apenas pastores Batistas para a sabatina e ordenação, optou em popularizar, convidou pastores de várias denominações, ensinando, mesmo que sem falar, que o Reino é maior que nossas aspirações denominacionais – ser pastor não é servir uma igreja é servir a Igreja. Por isto, mesmo que a morte tenha conduzido o Pr. Maia para junto do Mestre, sei que um pouco deste bom velhinho ficou artisticamente pintado em minha vida.

Pr. Clói – detentor de inquietadoras lembranças eclesiásticas. Foi através dele que boa parte das igrejas no centro-oeste brasileiro teve contato com uma missiologia profundamente bíblica. A capacidade dele de ensinar missões era inspiradora, reveladora e impulsionadora – igualmente ao Pr. Maia, Pr. Clói também fora meu professor no Seminário. Ainda me lembro, lá pelos idos da década de 90, quando ele foi pregar numa conferência missionária na igreja que eu congregava e foi neste dia que entendi que minha jornada existencial seria norteada por uma Teologia Bíblica de Missões. Fui à frente naquele dia e me comprometi a ofertar minha história para o Reino, de lá para cá tenho tentado fazer isto, o que fez surgir posteriormente a “Missão Tocando as Nações” (2004) – e lá estava ele outra vez, ensinando sobre missões. Por isto, mesmo que a morte abruptamente tenha, gentilmente, conduzindo o Pr. Clói para junto do Enviador da Missio Dei, sei que ainda vive um pouco dele no meu cotidiano.

Ah! Dona Morte! Desta vez você enobreceu nossas tristezas fúnebres, tornando a saudade algo digno de ser lembrado e vivido. E esta é, então, minha singela homenagem póstuma a estas duas pessoas (Maia e Clói) que foram emancipados por Deus pela morte, deixando o elixir da vida em meu caminho (e de tantos outros). Hoje sei que vocês foram “Che Pegue Anuê” (transliteração livre de um cumprimento indígena do Tupi-Guarani que significa afetivamente “pedaço meu”).

Fortalecido pela cruz de Cristo,
Vinicius Seabra | vs.seabra@gmail.com
_______________________________
Artigo escrito em: 20 de Março de 2014

segunda-feira, 3 de março de 2014

Deus, ausências e pastores a suicidar


“Cria em mim um coração puro, ó Deus, e renova dentro de mim um espírito estável. Não me expulses da tua presença, nem tires de mim o teu Santo Espírito. Devolve-me a alegria da tua salvação e sustenta-me com um espírito pronto a obedecer”.
Salmos 51:10-12 (NVI)
 

O título deste artigo pode ter causado estranheza, pois será discorrido sobre dois dos maiores tabus do mundo evangelical: a ausência de Deus – tema pouco difundido nos rincões gospel por gerar um sentimento de orfandade divina; e, o suicídio de pastores – tema absolutamente silenciado nos porões eclesiásticos por desnudar a humanidade que sustenta a invicta espiritualidade. Descrever sobre os dois temas separadamente já seria um desafio de proporções gigantescas, então faremos mais, associaremos ambos os assuntos como causa e efeito. É válido ponderar que as alienas que se seguirão não são as únicas abordagens possíveis, nem temos a intenções de simplificar a complexa junção de ausência de Deus e pastores suicidas. Contudo, é preciso romper o discurso programado de frases de efeito que povoa a previsibilidade de senso comum existente nas igrejas tupiniquins. É necessário ver mais que o perceptível; é imprescindível que se escute além das locuções; é fundamental que haja sensibilidade acima das oscilações emotivas; é indispensável que sejamos sinceros, mesmo que isto custe desnudar a fragilidade da nossa fé.

Nossa jornada se inicia a partir da ideia de “ausência de Deus”. No contexto bíblico percebem-se algumas situações em que esperávamos que Deus agisse de forma diferente por causa de quem Ele é, mas não O fez. Por exemplo: Onde Deus estava quando a serpente corrompeu Adão e Eva no Éden? Deus podia ter intervindo ali, mas não fez. Onde Deus estava quando Caim assassinou Abel? Deus podia ter impedido tal atrocidade, mas se omitiu. Onde Deus estava quando Estevão fora apedrejado injustamente? Deus podia ter evitado que o Reino perdesse um de Seus mais promissores pregadores, mas novamente Ele preferiu nada fazer. Além disto, a questões de ausências que nos emudecem, como: Por que Deus dá aos homens chance de arrependimento, mas para o diabo não há possibilidade de perdão? Por que Deus prometeu a Abraão um filho e demorou tanto ao ponto de isto ter provocado um desconforto/conflito histórico? Por que Deus não deixou Moises entrar na terra prometida depois de tudo que ele teve que suportar no deserto? Por que os profetas sofreram tanto para anunciar uma mensagem contrariamente de esperança? Por que a igreja primitiva sofreu tanta perseguição e Deus se silenciou? ...Por quê?

No contexto contemporâneo as indagações não perdem força, pelo contrário, agregam valores contextuais inquietadores, tipo: por que há tantas igrejas comprometidas com o Reino que não crescem? Por que há cristãos que estão a chorar por ocasião de tantas mazelas não provocadas por estes? Por que os ímpios prosperam? Por que, às vezes, dá a impressão que os descrentes são mais felizes que os igrejeiros? Por que o discurso de santidade não funciona? Por que nos sentimos tão vazios mesmo buscando sinceramente a Deus? ...enfim: Onde Deus está? Não são poucas as ocasiões em que temos a absoluta certeza de estarmos longe de Deus não por causa do pecado, mas sim porque a ausência dEle é perceptível e sufocante. E esta ausência é tão profunda que indagamos, frustradamente, a real existência dEle. Onde Ele está? Por que Ele prefere o silêncio? Então, depois de esgotarmos todas as engenhosas respostas criadas pelos teóricos (não teólogos) com fins a responder as interrogações, as dúvidas permanecem... pois, para cada resposta apresentada mais indigesto se torna  a jornada, ficando engordurada com frases de efeito, jargões ou reproduções autoritativas invictas.

Neste tempestuoso cenário de perguntas sem respostas surge o oráculo evangelical, um ser diferente dos demais seres-gospeis. Um homem (ou mulher) que se reveste da figura de “hermes” e faz aproximação entre Deus e mortais. Estes são chamados e aclamados pelo título (não função): pastores. A ironia foi proposital para ingressarmos no trágico segundo tópico proposto neste artigo, ou seja, pastores suicidas. De fato há poucos relatos de pastores que se suicidaram: Pr. Cosmo Rocha dos Santos (33 anos) em Alagoas, Brasil, em Abril de 2011 – “O corpo foi encontrado de joelhos sobre a cama nas dependências da igreja, com um fio de telefone envolta do pescoço”[1]. Pr. Teddy Parker (42 anos) em Geórgia, EUA, em Novembro de 2013 – Parker disse em um sermão: “Às vezes, eu não sinto que Deus está me ouvindo (...) Sabe, várias vezes sentimos que quando estamos passando por muita coisa de uma vez, é tanto que parece que estamos sozinhos. E adivinha? Deus quer que você se sinta assim. Sei que vocês já foram salvos há muito tempo. Sei que vocês são santos e super espirituais, mas há momentos em sua vida, não na de vocês, mas na minha, há momentos em minha vida em que passo por coisas e eu não consigo sentir que Deus está ali”[2].

Há registros do suicídio de três pastores nos EUA no final do ano de 2013, a partir de então os estudiosos decidiram investigar e chegaram a dados nada animadores: “70% dos pastores lutam constantemente com a depressão, e 71% estão 'esgotados'. Além disso, 72% dos pastores dizem que só estudam a Bíblia quando precisam preparar sermões, 80% acredita que o ministério pastoral afeta negativamente as suas famílias, e 70% dizem não ter um amigo próximo (...) O Instituto Schaeffer também estima que 80% dos estudantes de seminário (incluindo os recém-formados) irão abandonar o ministério dentro de cinco anos”[3]. Todos estes relatos e dados refere-se a pastores que interromperam suas próprias vidas ainda no oficio pastoral. Contudo, é preciso ir além, pois empiricamente sabemos haver muitos outros pastores que antes de se suicidarem se desviaram, não entrando nestes horríveis números estatísticos. O suicídio de ex-pastores é mais tolerável pela cristandade, alias, assim fica até fácil explicar o suicídio, responsabilizando o diabo e o pecado – simplificando o desejo da morte. É necessário investigar as causas, não explicar os fatos. É imprescindível delinear sobre as ausências, não justificar as presenças.

O suicídio de pastores (ou de ex-pastores) está intimamente ligado à ausência de Deus. É fruto de uma reflexão lógica de descrença total na ação de Deus a partir de suas vidas pastorais. Muitos dos que estão por ai pastoreando em solos tupiniquins não podem ser sinceros com seus próprios sentimentos, desilusões e frustrações. Não podem contar quantas vezes ficaram num banheiro imaginando de que forma poderiam acabar com a dor profunda de não saber se é verdade o que prega. Não podem dizer por ai quantas vezes se arriscaram com a esperança de que numa destas morreria e terminaria então não como suicida, mas como herói. Não podem declarar nos rincões gospel que não sabem explicar o porquê que Deus salvou uma pessoa de um acidente e, estranhamente, Deus nada fez para livrar o outro gerando dor nos familiares. Não podem reconhecer que ser pastor não os torna melhores, superiores ou mais chegados a Deus, pois para muito é só isto os distintivos de pastores. Não podem verbalizar que, às vezes, se arrependem de terem sido ordenados a pastores e que tem plena certeza de não estarem preparados. Não podem... até que dizem para o mundo o que realmente queriam dizer: morrer.

Não quero finalizar este artigo com teologias de frases de parachoque de caminhão. Não quero tentar defender Deus acerca de Suas ausências, pois disto Ele não precisa (e nem eu entendo!). Não quero tentar explicar de forma espiritualizada os suicídios de pastores, pois a muito silêncio antes da morte. Alguns poderiam apenas se contentar com explicações infantilizadas e estupidas como as que foram postadas por Edir Macedo (suposto pastor), quando afirma sobre os suicídios de pastores: “Isso aconteceu porque a fé do pastor estava alicerçada nos seus sentimentos e não na Palavra de Deus. (...) A fé inteligente despreza a visão, audição, tato, olfato e paladar. Ela é a certeza de coisas que se não veem ou sentem... A crença verdadeira se fundamenta naquilo que está prometido, escrito ou falado pela boca de Deus. Nada mais além disso”[4]. Isto é pura teologia de frase de parachoque de caminhão, pois exclui toda a humanidade do processo, distancia a vivência do espiritual e fomenta a figura heroica do pastor. Edir Macedo nunca quis que o povo vissem os pastores como gente, por isto no conhecidíssimo discurso gravado em 1995[5], ele afirma: “O povo tem que ter confiança no pastor. Se você mostrar aquela maneira xôxa, o povo não vai confiar em você para orar. Você tem que ser o super-heroi (...) é a fé ou não é? (...) tem aqueles que são tradicionais... agora tem outros (que dirão): poxa, a quanto tempo eu queria isto. Poxa, tô cansado de ler a bíblia, de ver tantas palavras e não acontecer nada na minha vida...”.

Por fim, temos que reconhecer que a ausência de Deus é mais agressiva que a Sua presença julgadora. Igualmente temos que admitir que a morte seja mais atrativa que viver uma farsa. Portanto, continuaremos ouvido, sorrateiramente, acerca do suicídio de pastores nos próximos anos. Haverá alguns que com profunda devoção e respeito, apesar de toda descrença em Deus, vão visivelmente se desviar, entrando pro rol dos ex-pastores suicidas – estes optaram por uma morte solitária, distante inclusive de Deus. E, enquanto “pastor” for um título de diferenciação entre nós, ao invés de um serviço fraternal e temporal, estaremos, então, sendo co-responsáveis pelos suicídios – aquele que aperta o gatilho não é o único a cometer suicídio, ele apenas protagoniza.

Fortalecido pela cruz de Cristo,
Vinicius Seabra | vs.seabra@gmail.com
_______________________________
Artigo escrito em: 26 de Fevereiro de 2014



[1] Confira a reportagem completa no link: http://leopoldinaparacristo.blogspot.com.br/2011/04/pastor-comete-suicidio-um-alerta-para.html
[2] Confira a reportagem completa no link: http://www.christiantoday.com/article/pastor.teddy.parker.commits.suicide.congregation.waits.for.him.after.confessing.sometimes.he.cant.feel.god/34672.htm
[3] Confira reportagem completa no link: http://noticias.gospelprime.com.br/pastores-suicidios-igreja-americana/
[4] Leia o comentário completo no link: http://www.bispomacedo.com.br/2013/12/23/pastor-comete-suicidio/
[5] Vídeo disponível no link: http://www.dailymotion.com/video/xe4xpr_jornal-nacional-denuncia-edir-maced_shortfilms