quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Deus não tem que capacitar os chamados


“Fiel é o que vos chama, o qual também o fará”.
1 Tessalonicenses 5:24 (ACF)

O povo do gueto evangélico brasileiro gosta de uma frase de efeito, ama jargões triunfalísticos, se esbravejam com uma teologia de para-choque de caminhão. E são exatamente estas concepções religiosas que mais tem danificado o Evangelho tupiniquim (leia também o artigo “frase de efeito para cristãos com defeito”, do mesmo autor). Quase sempre estes clichês espiritualizadores constroem uma teologia errada, antropocêntrica e até antibíblica – mesmo que mascarada de religiosidade autêntica e inquestionável. Então, a frase: “Deus não escolhe os capacitados, mas capacita os escolhidos” é uma destas aberrações clássicas. Esta construção religiosa está completamente equivocada e desabona a soberania de Deus, pelas razões que arrazoaremos nos parágrafos a seguir.

Era necessário sabermos quem é o autor da referida frase, pois a partir do autor poderíamos conceber ideias correlatas e o contexto (histórico, literário, religioso). Contudo, ao pesquisar na internet, na tentativa de perscrutar a autoria da referida frase, não obtive bons parâmetros, pois há incontáveis autores (gente sem criatividade, que escuta a frase, e como papagaio, posta nas redes sociais a frase para se parecer inteligente para os “amigos”). Então, não dá para saber quem foi o pai do referido clichês.

Arrisco palpitar que a frase foi uma resolução (resumo equivocado e distorcido) da celebre frase de Josué Yrion na conhecidíssima série que ele ministrou na Igreja Batista da Floresta em Belo Horizonte na década de 1990 (vídeo de combate ao suposto satanismo da Disney). Quando em um dado momento ele afirma: "Quando Deus chama, Ele capacita; Quando Ele capacita, Ele envia; Quando Ele envia, Ele supri; Quando Ele supri, Ele respalda!”. Apesar de parecidas as propostas, ainda acredito que há uma diferença entre ambas. Yrion põem Deus como agente central do processo, algo que no clichê que estamos abordando não parece ser o central.

A frase “Deus não escolhe os capacitados, mas capacita os escolhidos” esconde alguns problemas doutrinários, a saber: se Deus não escolhe os capacitados, então, o que acontece depois, quando Ele “capacita os escolhidos”? Há, portanto, uma gigantesca contradição no quesito “capacitação”. Ao que parece a frase quer supervalorizar os leigos, mas estes mesmos leigos esperam ser capacitados – tá ai uma coisa sem sentido! É válido ressaltar que no Reino Deus usa os capacitados e os não capacitados, porém a igreja ainda quer discutir qual é o mais importante. Se esquecem que para Deus títulos, ou a ausência destes, não são distintivos importantes. O que realmente importa é a disposição em servir, amar e perdoar – se engajando no Reino de forma plena, ao ponto de fazer o melhor possível para Deus, dentro de suas capacidades.

A referida frase é ainda mais prejudicial ao Evangelho se a tentativa foi fazer uma releitura do texto de Paulo: “Fiel é o que vos chama, o qual também o fará” - 1 Tessalonicenses 5:24 (ACF). Se a ideia foi fazer relação com o texto bíblico, então, a aberração é atroz. Perceba que o texto bíblico destaca que Deus é fiel, que é Ele quem chama e que é Ele quem fará – não há referência alguma de capacitação, pelo contrário, o texto destaca a ação de Deus, não a capacitação humana. O problema reside no fato de os cristãos ainda se acharem responsáveis pela manutenção da igreja, como se os seres humanos fosse o mais importante no Reino. Até parece que Deus precisa da santidade da igreja para permanecer sendo Deus. Ilusão.

Deus não age por meritocracia. Nem precisa de advogados, com fins a manter a reputação dEle. Por isto Paulo enfatiza: “se somos infiéis, ele permanece fiel, pois não pode negar-se a si mesmo” - 2 Timóteo 2:13 (NVI). A pretensão “...Deus capacita os escolhidos” é uma forma velada de antropocêntrico. A Obra é dEle, Ele o fará, o máximo que podemos fazer é sermos co-participantes (coadjuvante) na história. Então, não é a capacitação que importa, mas sim o agir dEle, no propósito dEle, para os fins que Ele deseja. Enfim, Ele o fará, independente de nossa capacitação.

Fortalecido pela cruz de Cristo,
Vinicius Seabra | vs.seabra@gmail.com
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Artigo escrito em: 22 de Outubro de 2014

sábado, 4 de outubro de 2014

Cartas aos ex-membros de minha igreja


 “...ansioso por lhes escrever acerca da salvação que compartilhamos...”
Judas 1:3 (NVI)

Nota explicativa, antes da escrita (e leitura) da carta. A proposta de “cartas aos ex-membros de minha igreja” segue a linha exposta em outro texto anterior a este (“cartas a minha ex-igreja”) que, semelhantemente, faz-se necessário compreender o destinatário, propósito e circunstancias a derredor desta. A primeira observação necessária a ser feita é, novamente, reiterar que a utilização do pronome possessivo “minha” nesta carta, também, não se refere à possessão, mas denota afetividade. A segunda consideração refere-se à necessidade de identificação de qual igreja me referendarei, a saber: Comunidade da Fé – Igreja Cristã (Goiânia, Goiás, Brasil), igreja que atualmente pastoreio. E por fim, reitero que a utilização da expressão “cartas” no plural não significa que existem ou existirão outras cartas (pelo menos não na forma convencional da escrita), mas denota os ecos advindos desta correspondência que, igualmente, jamais conseguiria ser, por definição, uma só carta.

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A/C
Aos ex-membros da Comunidade da Fé – Igreja Cristã.

Caros ex-membros da Comunidade da Fé – Igreja Cristã (COFE). Não tenho muita certeza se esta carta chegará a vocês, mas faço votos sinceros que chegue e que tenham paciência para ler as linhas que seguirão. Reconheço que me sinto desconfortável na escrita desta, pois englobarei num pacote só vários tipos de pessoas e várias situações distintas. Então, me sinto receoso de ser mal interpretado por ocasião das generalizações que aqui farei. Contudo, não acredito que seja prudente desdobrar particularidades, isto não edificaria o Reino, nem a nós mesmos. Portanto, a mim resta valer das palavras como pontes para aprendermos com o passado.

Fui dar uma bisbilhotada nas listas antigas e na atual lista de membros/frequentadores da Comunidade da Fé (COFE) e tive a estranha certeza que apesar de poucos anos de igreja (2007-2014) já estamos no rol das igrejas que mais tem ex-membros do que membros. Tive, então, a curiosidade, apesar do receio, de ficar alguns instantes lembrando de cada pessoa. Reconheço que esta foi uma sensação estranha (no mínimo constrangedora e sufocante), pois pude perceber que a ausência destes (ex)membros deixaram vazios gigantescos em minha vida e na história da COFE. Vocês deixaram buracos de proporções estratosféricas, provando mais uma vez que pessoas são sim insubstituíveis.

Ao pausar por alguns instantes, e relembrar de cada um de vocês que congregaram na COFE, me fez chegar a dois lugares distintos e antagônicos (simultaneamente). Primeiro percebi que alguns não mais estão na COFE, pois suas histórias superaram a COFE e, então, devido a nossa pequenez histórica não foi possível suportar a estes. São gente que precisavam de mais “espaço” para continuar a crescer e, talvez, a COFE fossem um limitador (pelo menos naquele momento histórico). A estes fica meu lamento e meu pesar consentimento, pois a grandeza destes (sem nenhuma ironia no termo) poderiam ter feito a COFE ser uma igreja melhor hoje. As ausências de vocês não somaram a nossa coletividade, pelo contrário, perdemos muito. Perdemos amigos, histórias e lembranças.

O outro lugar que cheguei (ou fui levado até lá) ao rever as listas de ex-membros, foi à dura percepção de que há muitos ex-membros da COFE que não mais estão em igrejas evangélicas (e em nenhum movimento religioso). Esta foi uma releitura que mereceu rigorosa autocrítica. Saber que alguns de vocês não mais estão conosco por terem alavancado voo superior a COFE é uma graciosa sensação de “abandono” (o primeiro lugar), mas saber que alguns de vocês não mais estão por terem largado a fé (o segundo lugar a que me refiro), é uma sensação de profunda perturbação pessoal-pastoral. E aqui me fez indagar que tipo de evangelho nós da COFE apresentamos a vocês, ou/e o que aconteceu entre nós que não foi suficientemente cristão ao ponto de desabonar a fé, e/ou ainda, se será que nós da COFE não conseguimos ser igreja para vocês de forma real. Estas indagações me preocupam sobremodo, mas as possíveis respostas destas questões me põem em crise didático-religiosa.

A crise didático-religiosa a que me refiro se dá por não conceber a idéia de deliberadamente transferir a culpa para vocês. Prefiro passar a reflexão culposa primeiramente por mim. Faço isto não por achar que eu sou importante no processo, mas como (ex)pastor de vocês acredito que seja minha responsabilidade criticar minha forma de pastoreio. Também perpasso a reflexão culposa por mim não para me vitimizar no processo, porém julgo relevante gastar um tempo para avaliar minhas (nossas) desventuras. A minha crise didático-religiosa se refere, essencialmente, a criticar o “modelo de ensino” da COFE (inclui-se: estudo bíblico, liturgia, culto, confraternizações, grupos familiares...) – e como sou o pastor não me resta para onde fugir.

É preciso reconhecer que, talvez, o “modelo de ensino” da COFE tenha sido (e talvez esteja sendo) muito insuficiente para vocês – fraquinho, superficial, distante da realidade local. Se este for o caso, só me resta admitir que tenho (temos) minhas (nossas) limitações. Contudo, sei que tanto eu, quanto os demais membros, sempre tentamos fazer o melhor possível, mesmo sabendo que existe uma diferença monumental entre fazer o melhor e ser o melhor – e ainda, admitir que fazer o melhor, às vezes, não é suficiente. Ainda temos muito a aprender, crescer e amadurecer, estamos no processo. Espero que tais deficiências (limitações) não sejam cristalizadas em suas mentes e corações. Reconheço que existem muitas igrejas melhor que a COFE, espero que vocês as encontrem e resignifiquem a fé de vocês.

Ao longo dos anos aprendi uma verdade inquietadora: ninguém muda de igreja por acaso; ninguém se desliga de um grupo religioso sem razão; ninguém sai de uma igreja despretensiosamente. E sempre que alguém sai (inclusive os chatos e os inúteis) o grupo perde. O bom da igreja é esta diversidade incontrolável (que, às vezes, faz expelir pessoas – mudar de igreja ou abandonar a igreja). Podemos até escolher onde congregar, não se pode escolher com quem vamos congregar. A todos vocês que são ex-membros da COFE fica registrado minha profunda gratidão e inquietação pelo tempo que congregamos juntos. Perdoe minhas (nossas) limitações e infantilidades, e quem sabe um dia poderemos caminhar juntos outra vez (isto seria fabuloso). Todos vocês deixaram marcar inesquecíveis em minha vida e na história da Comunidade da Fé – Igreja Cristã. Lamento por não mais estarmos juntos, mas agradeço por termos um dia estado juntos.

Fortalecido pela cruz de Cristo,
Vinicius Seabra | vs.seabra@gmail.com
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Artigo escrito em: 03 de Outubro de 2014