sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Cartas a minha ex-igreja


“Lembrem-se dos seus líderes, que lhes falaram a palavra de Deus...”
Hebreus 13:7 (NVI)

Nota explicativa, antes da escrita (e leitura) da carta. O título “cartas a minha ex-igreja” precisa ser compreendido para que saibamos qual o destinatário, propósito e circunstancias a derredor da mesma. A primeira observação necessária a ser feita é a utilização do pronome possessivo “minha”, que nesta carta não se refere à possessão, mas denota afetividade. A segunda consideração refere-se à utilização do termo no singular “ex-igreja”, pois me referendarei nesta carta a primeira igreja que congreguei, a saber: Igreja Cristã Evangélica do Avivamento – Ministério Geração Eleita (Goiânia, Goiás, Brasil). E por fim, a utilização da expressão “cartas” no plural não significa que existem ou existirão outras cartas (pelo menos na forma convencional da escrita), mas sim denota os ecos advindos desta correspondência que nunca conseguiria ser, por definição, uma só carta.

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A/C
Meus ex-líderes, ex-pastores e ex-amigos de congregação.

Caros ex-líderes, ex-pastores e ex-amigos de congregação. Reconheço que esta carta está sendo escrita tardiamente, não que não houvesse interesse anterior de tal escrita, neste intervalo de 10 anos (2004-2014) muitas vezes balbuciei algumas palavras, que por vezes acreditei não serem capaz de expressar o real intento de meu coração - ou por simplesmente não conseguir entender plenamente meu coração, assim como minha razão e intenção. Contudo, mesmo admitindo que as palavras não conseguem expressar o que precisa ser dito, e nem eu mesmo consiga perscrutar minhas mais profundas (e escondidas) intenções, resolvi escrever. Resolvi escrever para dialogar um pouco mais comigo mesmo e com aqueles que se emaranham comigo.

Inicio meu discurso com tons de desafortunada gratidão, pois nós convivemos por mais de 20 anos na mesma igreja (ICEA – Ministério Geração Eleita) e hoje sei que fora o melhor lugar para eu estar nestes referidos anos. Ali aprendi valores que a mim hoje são inegociáveis, como caráter, honestidade, organização, doação, transparência, altruísmo, espiritualidade e respeito. Ali aprendi a não ser expectador do Reino, e assim assumindo responsabilidades eclesiásticas com humildade, comprometimento e paixão. Ali aprendi que servir a Deus é mais vocação do que profissão, por esta razão não posso, até hoje, oferecer a Deus menos do que a minha vida inteira. Ali aprendi a ser cristão.

Sou grato a Deus por ter tido o privilégio de congregar numa igreja que me concedeu a oportunidade de me desenvolver no ministério. Contudo, seria eu faltoso com a verdade se também não admitisse que neste mesmo ambiente vivenciei situações de profunda desilusão, dor, tristeza e decepção. Por esta razão esperei 10 anos para escrever, pois ainda tenho muitas dúvidas sobre as desventuras que vivenciei ai. Dúvidas digo, pois por vezes ainda não entendo os acontecidos. Às vezes acho que houve umas armadilhas coletivas para nos fazer desentender – sempre tem gente na igreja que quer ver os outros brigarem. Outras vezes tenho a impressão que vocês (lideres/pastores) só queriam manter a autoridade/superioridade – e nestes dias a pauta das reuniões era irrelevante. Outras tantas vezes tenho a certeza de que a mim faltou humildade – tá ai uma virtude que persigo deste adolescência, mas que insiste em me escapar com certa frequência.

Ao contrário do que possa parecer não guardo magoa de ninguém dai (minha ex-igreja), pois estes momentos de desconforto ministerial produziram, tempos depois, maturidade tanto em mim como a vocês. Contudo, isto não significa esquecer, ou deletar tais situações do passado. Até porque se isto fosse possível perderíamos o fator pedagógico inserido nas vivências. O que lamento, e lamento profundamente, é perceber, depois de uma década, que poderíamos ter agido diferente, em quase todas as situações, evitando ferir/machucar a nós mesmos. Por esta razão, sei e admito, com profundo pesar, que provavelmente hoje tenham várias pessoas que não mais estão em igrejas por minha causa, pela forma como as tratei, de como falei e das coisas que fiz em nome de Deus (e acredito que tal fantasma assombra alguns de vocês ai também).

A minha saudosa gratidão externada nos parágrafos anteriores não exclui minhas desilusões. Por esta razão, reafirmo, especialmente para os leitores desatentos, que sou grato a Deus pela minha ex-igreja. E como fruto desta gratidão reafirmo (digo reafirmo, pois tal fato já fora verbalizado em outros momentos de forma pessoal)  publicamente meu pedido de perdão a todos os que comigo conviveram neste período (1981-2004) e que se sentiram prejudicados por minha causa. Meu pedido de perdão e meu sincero sentimento de gratidão não são para que haja liberação espiritual (não acredito nestas hierarquias espiritualizadoras), nem tem haver com ser abençoado (não acredito nesta relação meritocrata com Deus). Peço perdão e sou agradecido, pois este é sentimento (ação) que tenho em meu coração. Não há nenhum interesse por detrás, não quero nada, é apenas gratidão e perdão.

O leitor contemporâneo das citadas vivências nesta carta deve estar inquieto, a se perguntar: será que esta carta é uma declaração de arrependimento de ter saído da referida igreja? A resposta cambaleia ora para o sim, ora para o não – depende do sentido proposto. Sim, me arrependo de não ter tentado de outras formas, me arrependo de minha inflexibilidade, me arrependo de ter sido precipitado, me arrependo de ter me encantado com as ovações das pessoas, me arrependo de ter acredito que eu era mais que de fato era, me arrependo de ter perdido amigos, me arrependo de ter perdido parte de minha história. E não, não me arrependo de ter tentado, não me arrependo de ter aventurado naquilo que acredito ser a vontade de Deus, não me arrependo de ter tido a experiência de me lançar no desconhecido, não me arrependo de ter descoberto coisas novas, não me arrependo de ter fundado uma agência missionária (anos depois - 2007 - fundamos uma igreja também), não me arrependo de ter sido acolhido por outros amigos, não me arrependo de estar perdendo minha vida, não me arrependo de ainda não entender o que estou fazendo.

Esta carta não é para demonstrar quem estava certo ou errado, acredito que ambos (eu e minha ex-igreja) já superamos esta infantilidade advinda da afirmativa do vencer, nós dois perdemos (e igualmente ganhamos). A história continua, e Deus tem sido graciosos para conosco. Pessoas entram e saem das igrejas, algumas passam por lá como numa rodoviária, não criam vínculos, se mantem distantes – estes nunca entenderão esta carta. Há outros que fazem da igreja uma escolha, e então, passam por lá como se fosse numa família, criam vínculos, se aproximam, conhecem e são conhecidos – estes sabem que a ex-igreja continua sendo parte deles. Esta carta é um manifesto contra a ruptura de histórias, é um convite para a fraternidade do Reino.

Fortalecido pela cruz de Cristo,
Vinicius Seabra | vs.seabra@gmail.com
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Artigo escrito em: 26 de Setembro de 2014

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

"LER" pastoral


“Pastoreiem o rebanho de Deus que está aos seus cuidados. Olhem por ele, não por obrigação, mas de livre vontade, como Deus quer. Não façam isso por ganância, mas com o desejo de servir. Não ajam como dominadores dos que lhes foram confiados, mas como exemplos para o rebanho”.
1 Pedro 5:2-3 (NVI) 

Ser pastor para muitos aventureiros gospeis resume-se a fazer um show dominical, e nada mais. Converge todo o ministério pastoral numa festiva seção religiosa coletiva que estranhamente pouco tem de envolvimento. São pastores de auditórios. Que de longe discursam sobre seus triunfalismos, que quase sempre são recheados de testemunhos pessoais próprios, como se suas vidas pastoris fossem a base para a fé dos ouvintes. Fazem da religião uma panaceia neurótica desprovida de relevância cotidiana. São pastores que não são pastores, mas sim animadores de palco, gerentes eclesiásticos e/ou apenas pastores de títulos (nunca pastorearam efetivamente). Para estes, pastorear é uma diversão com ares de status social-religioso, afinal para muitos o pastor é o ungido intocável todo poderoso.

Longe desta palhaçada contemporânea que fez do pastor um super-herói da religiosidade moderna existe os pastores (ordenados ou não) que, intencionalmente, escolheram pastorear “não por ganância, mas com o desejo de servir. Não como dominadores dos que lhes foram confiados...” - I Pe. 5:2-3. Entretanto, não sejamos ingênuos, este não estão imunes às mazelas da vocação pastoral e, então, são atormentados com a LER pastoral – LER aqui não se refere ao verbo “ler”, mas sim a Lesão por Esforço Repetitivo (LER) aplicado a corriqueira rotina pastoral de muitos.

A LER pastoral leva anos para demonstrar sintomas visíveis, pois afinal, é resultado de ações repetitivas cotidianamente que aparentemente são inofensivas, mas com o tempo se mostra sobremodo prejudiciais. E é exatamente sobre estas inofensividades cotidianas repetitivas que abordaremos neste texto, desnudando como os próprios pastores, a igreja e o sistema eclesial moderno corroboram para a degeneração dos pastores vocacionados. Automaticamente fortalecendo o aparecimento dos super-pastores que nunca sofreram da LER pastoral, pois para todos os efeitos estes não são pastores.

A LER pastoral inicia quando o referido pastor (insisto, ordenado ou não, ser pastor não tem muito haver com a nomeação, mas sim com a função prática e a vocação desenvolvida) tem que constantemente ensinar as mesmas coisas quase que dominicalmente. Repete o mesmo sermão várias vezes, não com o mesmo texto, nem com os mesmos argumentos, mas sim com a mesma essência educativa-religiosa proposta, pois parece que os ouvinte não tem mais capacidade de interiorização das temáticas apresentadas. Repete-se os estudos bíblicos, pois percebe-se que o que fora exposto não teve relevância (apropriação) para os fieis. Repete-se, e repete-se os ensinos. Até que o referido pastor cansa de tentar convencer os ouvintes acerca das verdades bíblicas e dai começa até a questionar se realmente são “verdades”.

A LER pastoral se dá quando o pastor tem que ficar mantendo membros na igreja através de visitas sistemáticas aos fieis. A visitação faz parte do ministério pastoral, contudo, valer-se deste para manter membros na igreja é um convite à repetição mecanicista e desprovida de efetiva fraternidade. Repete-se as visitas com freqüência, pois se não visitar os membros embirram e vão para outra igreja ou “desviam”. Repete-se as visitas, pois as pessoas precisam ser mimadas para suprir um carência afetiva do nosso tempo. Repete-se, e repete-se as visitas. Até que o referido pastor cansa de repetir uma ação que julga ser apenas mecânica e dai começa a distanciar das pessoas.

A LER pastoral se manifesta quando em toda reunião de conselho, presbitério, diaconal, ou qualquer outra forma organizacional de governo eclesiástico, tem-se que ficar a repetir as mesmas orientações básicas. Quase que não precisa mudar a pauta da reunião: os problemas estruturais continuam os mesmos, o pessoal do louvor permanece insubmisso, na liderança dos departamentos sempre tem um líder que precisa ser exortado/corrigido e por ai vai... Ao que parece os problemas permanecem os mesmos, o que muda é somente o rosto dos envolvidos. Então, repete-se as reuniões de conselho para tomar as mesmas decisões que já tinham sido deliberadas. Repete-se as reuniões para reafirmar o que fora definido na reunião anterior. Repete-se, e repete-se as reuniões. Até que o referido pastor cansa de repetir as mesmas reuniões chatas/improdutivas e dai começa a tomar decisões isoladamente ou decide afastar do pastoreio para não ter que aguentar esta estagnação de maturidade coletiva.

A LER pastoral é real, e afeta os pastores de forma violenta, ao ponto de alguns não resistirem a tamanho desgaste intelectual, emocional e físico, não restando outra opção a não ser abandonar o pastoreio. Este intencional abandono não é sintoma de fraqueza, mas sim um suspiro de reverência, pois quando os tais pastores com LER pastoral se olham no espelho não conseguem ver alguém que esteja contribuindo com o Reino, por isto preferem sumirem, renegando a si mesmos ao campo da inutilidade. Estes reconhecem a visibilidade de suas patologias pastorais e não querem bandidar para o outro extremo se tornando super-pastores de platéias.

A boa notícia é que se a LER pastoral é provocada por uma rotina mecanicista que sufoca a essência ministerial, então, podemos combate-la através de um esforço coletivo (pastores, igreja e sistema). Talvez se houvesse mais intencionalidade em engajarmos nossas vidas no ministério; Talvez se nos dispormos a ser ao invés de fazer; Talvez se decidirmos congregar não esperando receber, mas sim em doarmos parte de nós; Talvez se pastorear não fosse um distintivo de diferenciação entre os irmãos; Talvez se pararmos de inventar desculpas; Talvez se começássemos a assumir nossas culpas... talvez...

Fortalecido pela cruz de Cristo,
Vinicius Seabra | vs.seabra@gmail.com
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Artigo escrito em: 11 de Setembro de 2014