quarta-feira, 19 de agosto de 2015

A morte que foge


“Vaidade de vaidades, diz o pregador, vaidade de vaidades! Tudo é vaidade”.
Eclesiastes 1:2 (ACRF)

A percepção normal da vida é que ao fim sejamos embalados pela morte, como que num último ato poético da vivência. Há o entendimento que a morte é sintoma, apenas, daqueles que desistiram de viver, como se morrer fosse um sinal de desistência intencional.  Compreende-se que a morte é algo que ninguém quer, a não ser pelos devassos suicidas, que permanecem destoantes dos discursos espelhados. Entendemos, então, que fomos criados para viver isto que chamamos de vida, restringindo à morte o fim de todas as coisas, desconhecendo os limites e intenções dAquele que nunca morrerá, e que nos convida para à vida eterna.

A Dona Morte não é tão demonizante como a rotulamos historicamente e religiosamente. Talvez, a morte seja apenas um instrumento da Graça. Uma espécie de passaporte para a verdadeira vida, tipo um convite para algo verdadeiro. A Dona Morte bem poderia ser a agente promotora da libertação de nossas próprias futilidades humanas. Talvez, esta seja a visão do Eterno sobre a nossa brevidade temporal-histórica, que precisava se findar de alguma forma, para desvelar a Verdade, dai, a coadjuvante morte aparece na história, roubando a cena entre os mortais.

Salomão, especialmente no livro de Eclesiastes, ao olhar para a vida, percebeu o quanto tudo aqui, debaixo do sol, é inútil, desmetido, fútil, desvairado e incontível. Por isto, para ele, amar a vida é tão anêmico quanto odiar a morte. É preciso que nos reconectemos com a eternidade e dali perceber que viver ou morrer é apenas uma questão insignificante que temos que enfrentar nos dilemas existenciais. Portanto, viver não é tão belo como se encena, e nem morrer é tão terrível como se teatraliza.

O Deus que não tem início nem fim, que existe antes da eternidade, Ele que gerou vida no Éden e predestinou o fim de todas as coisas. Ele mesmo, ao contemplar nossa presunção de vida-morte nos convida a perceber nossa pequenez, como fez com Jó. Qual sentido de viver? Qual o proposito em morrer? Estas questões não se respondem pelo que conhecemos, pois não somos autônomos ou independentes de uma História maior, incognoscível a nós. Afinal, ninguém voltou da morte para dizer como se vive lá, nem ninguém deixou de viver para contradizer a morte. É por isto, que toda esta espetacularização da vida-morte é pura vaidade, reitera Salomão.

Desejar morrer não é querer suicidar (no que tange aos postos padrões categorizáveis da sociedade contemporânea), e nem constitui num ato de desrespeito ao Autor da Vida (como se Deus e a morte vivessem a lutar numa batalha épica pela humanidade). Desejar o encontro com a Dona Morte é ato de bravura indômita de gente que entende que a morte pode ser um ato de profunda reverência ao Carpinteiro e preservação da história cristã, para além de nós mesmos.

A morte é bem-vinda quando o pecado já é indivisível a nossa personalidade, tornando a existência uma tormenta insuportável, com dores alucinógenas de consciência. E não é simples abandonar os pecados que nos definem, pois os próprios pecados são submetidos a critérios de avaliação coletiva que julga entre pecados aceitáveis e pecados não aceitáveis. Para Deus pode até não haver diferença entre ambos, mas para a sociedade, e para a igreja, há enorme distinção. Há pecados com consequências diferentes, apesar da mesma natureza. Contudo, para aqueles mortais que carregam o estigma do pecado não tolerável, a estes a busca pela morte é uma questão de vida.

Ao conhecer a Cristo, a vida se resignifica. Entretanto, o difícil não se converter, mas sim permanecer convertido. E desta distinção entre um momento sui generis como a conversão para um cotidiano convertido, há um abismo gigantesco. Então, há aqueles que percebem que não tem para onde ir, só Jesus tem as palavras de vida eterna (conforme acentua Pedro em Jo 6:68), porém estranhamente seus corações e intenções vão se distanciando do Reino. Quando estes se apercebem do quanto suas histórias perderam sentido, então buscam a morte. Buscam-na não por demérito ou fraqueza, mas por zelo em não corromper a eclesia em artimanhas sutis de manutenção do status quo e, principalmente, para que haja preservação dos santos que conseguiram permanecer firmes.

A morte pode ser um refúgio para aqueles que muito tentaram e quase sempre fracassaram. Há quem consiga superar os mais improváveis desafios da vida e ainda sim permanecer em pé. Parabéns para estes, mas isto não quer dizer que todos conseguem. E contra argumentar que se alguém conseguiu, então, outros podem conseguir, é considerar todos iguais. O que definitivamente não o somos. A nossa idiossincrasia nos permite não conseguir o que muitos conseguem facilmente, pois somos diferentes. Criados com propósito diferentes. Inclusive, alguns criados como “vasos de desonra” (cf. Rm 9:21). Entretanto, para estes pode até ser que aceitem o destino inglório, mas não significa que tem prazer nesta vida. Para estes a morte se torna num descanso para uma história de desonra ao Mestre, a semelhança de Judas (cf. Mt. 27:3-5).

Há muitas pessoas que buscam a morte, diariamente, de forma disfarçada para não serem identificados como suicidas ou outras designações depreciativas frente aos abutres sapiens. Arriscam suas vidas de diversas formas, esperam um acidente qualquer, aguardam um erro do sistema, torcem para algo dar erro. Mas... ainda sim a morte foge para longe e acomete em lugares distantes com pessoas improváveis. Isto acontece, pois a morte (assim como a vida) não está a serviço de nossas histórias, intenções e desejos. Viver ou morrer não são opções disponíveis a nossa temporalidade.

Fortalecido pela cruz de Cristo,
Vinicius Seabra | vs.seabra@gmail.com
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Artigo escrito em: 19 de Agosto de 2015

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